sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Poemas

Possuo um amor inacessivel e declarado por Vinicius de Moraes. Desde a primeira vez que li seus poemas, me vi perdidamente encantada por suas palavras tão doces, atrozes, finas e ousadas.

Lembro-me que o primeiro poema que li foi "Receita de mulher". Ao passo que ia decifrando as letras, as palavras que se formavam tornavam-se uma espécie de mel embriagante (como ele mesmo cita no poema) que nao deixava livrar-me daquela atividade.

Era como se eu houvesse encontrado um oásis no meio do deserto urbano. No meio de tantas pessoas e tanta informação fui eu, achar logo em um pequeno livro de poemas o encanto, a magia e o amor sensivel que só os amantes das palavras entendem.

Compartilho aqui entao, este poema:

Receita de mulher

As muito feias que me perdoem mas beleza é fundamental. É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes. Indispensável. Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida a mulher se alteie em cálice, e que seus seios sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem no entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). Preferíveis sem dúvida os pescoços longos de forma que a cabeça dê por vezes a impressão de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferiorA 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos ao abri-los ela não estará mais presente com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida. Oh, sobretudo que ela não perca nunca, não importa em que mundo não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre o impossível perfume; e destile sempre o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero; e em sua incalculável imperfeição constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

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